Artêmides Zatti, imigrante

Quarta, 02 Novembro 2022 12:13 Escrito por  Ariel Fresia, SDB – BS Argentina. Tradução: Ana Cosenza
Artêmides Zatti, imigrante A família Zatti em Bernal, foto de 1899 Arquivo BS Argentina
Um santo imigrante, resposta de esperança frente às adversidades.    

Doze mil quilômetros separam o povoado de Boretto, na região de Reggio-Emilia, na Itália, da cidade de Bahia Blanca, ao sul da província de Buenos Aires, na Argentina. Como milhões de famílias de sua época, os Zatti imigraram até a América em busca de melhores condições de vida. Uma paisagem, uma cultura e uma linguagem novas recebem um jovem Artêmides, um santo que viveu alguns dos sonhos, dificuldades, saudades e alegrias que sente cada imigrante que deixa a sua terra natal.

 

Milhões em busca de um futuro melhor

Na segunda metade do século XIX, o sistema social e a estrutura agrária italianos sofreram uma forte crise que afetou os pequenos produtores e arrendatários rurais. O deslocamento do campo para a cidade, provocado pela industrialização, assim como a concentração de terras na área rural e o crescimento da pobreza, levaram o campesinato italiano a imigrar para a América.

 

Dos 52 milhões de europeus que imigraram entre 1830 e 1930, cerca de 11 milhões desembarcaram na América Latina: a maioria era proveniente do norte da Itália e da Espanha. Quase a metade – cerca de cinco milhões de italianos – se radicou na Argentina.

 

Boretto, um pequeno povoado de camponeses sobre o rio Po, também sentiu o impacto da crise agrária. A família Zatti sofreu muitas perdas econômicas. Todos os seus membros, desde muito cedo, se dedicaram a trabalhar no campo, inclusive as crianças. Os filhos maiores e outros familiares se empregavam como jornaleiros ou peões para ganhar o pão e a polenta: “Nascido em um lugar pobre, onde havia muitas bocas e poucos recursos, era necessário trabalhar se se queria viver”, sintetiza o salesiano Raúl Entraigas, principal biógrafo de Zatti.

 

Como o restante de sua família, Artêmides levou uma vida pobre e sacrificada de camponês trabalhador. E, assim como outros italianos, os Zatti viram na “América” uma saída. A informação de familiares que já estavam neste continente era entusiasmante. Particularmente o tio Juan Zatti, que estava instalado em Bahia Blanca, fez o papel de “incentivador”.

 

As cadeias migratórias, as redes de sociabilidade e a identidade étnica e religiosa funcionavam para canalizar notícias, descobrir oportunidades de trabalho e aproveitar os poucos recursos disponíveis. Os amigos e familiares já residentes na “terra promissora” davam início a essas redes. No início de 1897, a família Zatti embarcou rumo à Argentina. Artêmides contava então com 16 anos.

 

Vínculos e fé para sentir-se em casa

Chegados à América, os imigrantes italianos, em sua imensa maioria trabalhadores agrícolas, foram se dedicando a diferentes atividades que lhes permitissem ganhar a vida ou, no melhor dos casos, conquistar um pequeno ascenso social. Os Zatti chegaram à Argentina em 9 de fevereiro e se instalaram em Bahia Blanca, então uma pequena localidade ao sul da província de Buenos Aires.

 

O apoio dos familiares e a solidariedade das redes de apoio social, como as sociedades de socorro mútuo e a ação da Igreja, proporcionaram a inclusão dos imigrantes à vida social, cultural e produtiva. Os Salesianos de Dom Bosco, muitos deles também italianos, favoreceram essa inserção na sociedade bahiense.

 

Como parte dessa cadeia migratória, Artêmides trabalha como conselheiro dos novos incorporados ao país: “Escutei que chegou da Itália, ou dizendo melhor, de Boretto, o primo Higinio. Desde as distantes terras da Patagônia desejo-lhe boa sorte. (...) Aconselho que não se deixe atrapalhar (isso vale para todos) por aquele patrão que o faça trabalhar nos dias festivos, com a desculpa da necessidade, dizendo e praticando o que já havia ouvido dizer, que na América tudo é permitido com o objetivo de fazer dinheiro”.

 

Os Zatti, uma família religiosa, acostumada às práticas de piedade dos camponeses, concorriam assiduamente à paróquia de Boretto. Na Argentina, Artêmides, como todos os seus irmãos, se incorporou à vida paroquial e logo se transformou em assíduo participante das atividades organizadas pelos salesianos. No contato com eles nasceu sua vocação religiosa e o desejo de se fazer salesiano.

 

Com a recordação da terra natal

Os migrantes, inclusive os incorporados a sociedades “receptivas”, como os Zatti no final do século XIX, experimentaram a pobreza e a incerteza. Ainda que tentassem manter os laços com o povo de origem, iam construindo novos vínculos para abrir seus caminhos. Por causa de uma negociação, Artêmides entra em contato com seu pároco em Boretto, que envia saudações a todos os seus conterrâneos: “Escrevi para Boretto, ao padre Constante Solian, pedindo a ele meus certificados de Batismo e Crisma. Ele já me enviou, encarregando-me de saudar a todos vocês, e aos “Boretenses” que vivem em Bahia Blanca”.

 

Na vida de Artêmides podemos ver a sua resiliência diante das adversidades em seu novo contexto de vida: trabalho precário, estudos incompletos, dificuldades graves de saúde, incertezas sobre o futuro. Frente a todas elas, pôde se refazer. Finalmente, em 1914, obtém sua “carta de cidadania” como cidadão da República Argentina. Em 1934, por causa da canonização de Dom Bosco e por uma única vez, volta à Itália e visita seu povoado natal.

 

Um santo imigrante

Vários fatores incidem nas migrações, que podem ser voluntárias ou forçadas, como resultado de desastres ecológicos, crises econômicas e situações de pobreza extrema ou conflitos armados, cuja magnitude e frequência não deixam de aumentar.

 

Se bem que em proporção menor ao que foi no final do século XIX, países como a Argentina continuam recebendo a cada ano centenas de milhares de imigrantes, sobretudo provenientes de outros lugares da América Latina. E, como em outros lugares do mundo, a obra salesiana é um ponto de encontro e de fé para as famílias migrantes, além de lugar de formação e de recreação para suas crianças e seus jovens.

 

Ao mesmo tempo, e como consequência de diversos fatores, também hoje muitas pessoas deixam seu país natal para radicarem-se em outros lugares. Ele e elas vão, assim como aconteceu com a família Zatti, em busca de novas oportunidades, perseguindo sonhos, com dificuldades e medos.

 

Hoje, como antes, os migrantes – apesar das carências, injustiças e desigualdades – graças aos seus conhecimentos, redes e competências pessoais, buscam abrir caminhos e construir um futuro melhor. Dessa maneira, contribuem para forjar comunidades mais fortes, diversas e com sujeitos resilientes na nova sociedade e cultura a que chegam.

 

Os Zatti, e entre eles Artêmides, construíram uma história na Argentina. Aquele imigrante de Boretto encontrou uma vocação junto aos salesianos e desenvolveu uma vida plena. A história posterior o mostra em Viedma, consolidado em uma vocação de serviço incondicional. Uma trajetória de vida consagrada a Deus e aos mais pobres, razão pela qual é relembrado como o “parente de todos os pobres” e um santo sensível e próximo das pessoas. Um santo imigrante, esperança para tempos difíceis.

 

Publicado originalmente em Boletín Salesiano Argentina, agosto de 2022.

 

Leia mais

Veja no site dedicado a Santo Artêmides Zatti os cinco artigos sobre a biografia do santo, preparados pelo BS Argentina: https://zatti.org/pt/inicio-portugues/

 

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Artêmides Zatti, imigrante

Quarta, 02 Novembro 2022 12:13 Escrito por  Ariel Fresia, SDB – BS Argentina. Tradução: Ana Cosenza
Artêmides Zatti, imigrante A família Zatti em Bernal, foto de 1899 Arquivo BS Argentina
Um santo imigrante, resposta de esperança frente às adversidades.    

Doze mil quilômetros separam o povoado de Boretto, na região de Reggio-Emilia, na Itália, da cidade de Bahia Blanca, ao sul da província de Buenos Aires, na Argentina. Como milhões de famílias de sua época, os Zatti imigraram até a América em busca de melhores condições de vida. Uma paisagem, uma cultura e uma linguagem novas recebem um jovem Artêmides, um santo que viveu alguns dos sonhos, dificuldades, saudades e alegrias que sente cada imigrante que deixa a sua terra natal.

 

Milhões em busca de um futuro melhor

Na segunda metade do século XIX, o sistema social e a estrutura agrária italianos sofreram uma forte crise que afetou os pequenos produtores e arrendatários rurais. O deslocamento do campo para a cidade, provocado pela industrialização, assim como a concentração de terras na área rural e o crescimento da pobreza, levaram o campesinato italiano a imigrar para a América.

 

Dos 52 milhões de europeus que imigraram entre 1830 e 1930, cerca de 11 milhões desembarcaram na América Latina: a maioria era proveniente do norte da Itália e da Espanha. Quase a metade – cerca de cinco milhões de italianos – se radicou na Argentina.

 

Boretto, um pequeno povoado de camponeses sobre o rio Po, também sentiu o impacto da crise agrária. A família Zatti sofreu muitas perdas econômicas. Todos os seus membros, desde muito cedo, se dedicaram a trabalhar no campo, inclusive as crianças. Os filhos maiores e outros familiares se empregavam como jornaleiros ou peões para ganhar o pão e a polenta: “Nascido em um lugar pobre, onde havia muitas bocas e poucos recursos, era necessário trabalhar se se queria viver”, sintetiza o salesiano Raúl Entraigas, principal biógrafo de Zatti.

 

Como o restante de sua família, Artêmides levou uma vida pobre e sacrificada de camponês trabalhador. E, assim como outros italianos, os Zatti viram na “América” uma saída. A informação de familiares que já estavam neste continente era entusiasmante. Particularmente o tio Juan Zatti, que estava instalado em Bahia Blanca, fez o papel de “incentivador”.

 

As cadeias migratórias, as redes de sociabilidade e a identidade étnica e religiosa funcionavam para canalizar notícias, descobrir oportunidades de trabalho e aproveitar os poucos recursos disponíveis. Os amigos e familiares já residentes na “terra promissora” davam início a essas redes. No início de 1897, a família Zatti embarcou rumo à Argentina. Artêmides contava então com 16 anos.

 

Vínculos e fé para sentir-se em casa

Chegados à América, os imigrantes italianos, em sua imensa maioria trabalhadores agrícolas, foram se dedicando a diferentes atividades que lhes permitissem ganhar a vida ou, no melhor dos casos, conquistar um pequeno ascenso social. Os Zatti chegaram à Argentina em 9 de fevereiro e se instalaram em Bahia Blanca, então uma pequena localidade ao sul da província de Buenos Aires.

 

O apoio dos familiares e a solidariedade das redes de apoio social, como as sociedades de socorro mútuo e a ação da Igreja, proporcionaram a inclusão dos imigrantes à vida social, cultural e produtiva. Os Salesianos de Dom Bosco, muitos deles também italianos, favoreceram essa inserção na sociedade bahiense.

 

Como parte dessa cadeia migratória, Artêmides trabalha como conselheiro dos novos incorporados ao país: “Escutei que chegou da Itália, ou dizendo melhor, de Boretto, o primo Higinio. Desde as distantes terras da Patagônia desejo-lhe boa sorte. (...) Aconselho que não se deixe atrapalhar (isso vale para todos) por aquele patrão que o faça trabalhar nos dias festivos, com a desculpa da necessidade, dizendo e praticando o que já havia ouvido dizer, que na América tudo é permitido com o objetivo de fazer dinheiro”.

 

Os Zatti, uma família religiosa, acostumada às práticas de piedade dos camponeses, concorriam assiduamente à paróquia de Boretto. Na Argentina, Artêmides, como todos os seus irmãos, se incorporou à vida paroquial e logo se transformou em assíduo participante das atividades organizadas pelos salesianos. No contato com eles nasceu sua vocação religiosa e o desejo de se fazer salesiano.

 

Com a recordação da terra natal

Os migrantes, inclusive os incorporados a sociedades “receptivas”, como os Zatti no final do século XIX, experimentaram a pobreza e a incerteza. Ainda que tentassem manter os laços com o povo de origem, iam construindo novos vínculos para abrir seus caminhos. Por causa de uma negociação, Artêmides entra em contato com seu pároco em Boretto, que envia saudações a todos os seus conterrâneos: “Escrevi para Boretto, ao padre Constante Solian, pedindo a ele meus certificados de Batismo e Crisma. Ele já me enviou, encarregando-me de saudar a todos vocês, e aos “Boretenses” que vivem em Bahia Blanca”.

 

Na vida de Artêmides podemos ver a sua resiliência diante das adversidades em seu novo contexto de vida: trabalho precário, estudos incompletos, dificuldades graves de saúde, incertezas sobre o futuro. Frente a todas elas, pôde se refazer. Finalmente, em 1914, obtém sua “carta de cidadania” como cidadão da República Argentina. Em 1934, por causa da canonização de Dom Bosco e por uma única vez, volta à Itália e visita seu povoado natal.

 

Um santo imigrante

Vários fatores incidem nas migrações, que podem ser voluntárias ou forçadas, como resultado de desastres ecológicos, crises econômicas e situações de pobreza extrema ou conflitos armados, cuja magnitude e frequência não deixam de aumentar.

 

Se bem que em proporção menor ao que foi no final do século XIX, países como a Argentina continuam recebendo a cada ano centenas de milhares de imigrantes, sobretudo provenientes de outros lugares da América Latina. E, como em outros lugares do mundo, a obra salesiana é um ponto de encontro e de fé para as famílias migrantes, além de lugar de formação e de recreação para suas crianças e seus jovens.

 

Ao mesmo tempo, e como consequência de diversos fatores, também hoje muitas pessoas deixam seu país natal para radicarem-se em outros lugares. Ele e elas vão, assim como aconteceu com a família Zatti, em busca de novas oportunidades, perseguindo sonhos, com dificuldades e medos.

 

Hoje, como antes, os migrantes – apesar das carências, injustiças e desigualdades – graças aos seus conhecimentos, redes e competências pessoais, buscam abrir caminhos e construir um futuro melhor. Dessa maneira, contribuem para forjar comunidades mais fortes, diversas e com sujeitos resilientes na nova sociedade e cultura a que chegam.

 

Os Zatti, e entre eles Artêmides, construíram uma história na Argentina. Aquele imigrante de Boretto encontrou uma vocação junto aos salesianos e desenvolveu uma vida plena. A história posterior o mostra em Viedma, consolidado em uma vocação de serviço incondicional. Uma trajetória de vida consagrada a Deus e aos mais pobres, razão pela qual é relembrado como o “parente de todos os pobres” e um santo sensível e próximo das pessoas. Um santo imigrante, esperança para tempos difíceis.

 

Publicado originalmente em Boletín Salesiano Argentina, agosto de 2022.

 

Leia mais

Veja no site dedicado a Santo Artêmides Zatti os cinco artigos sobre a biografia do santo, preparados pelo BS Argentina: https://zatti.org/pt/inicio-portugues/

 

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