Vocação e vocações: saber acolher o Dom de Deus

Quarta, 12 Agosto 2020 12:06 Escrito por  Pe. João Mendonça, SDB
Vocação e vocações: saber acolher o Dom de Deus iStock.com
Neste artigo apresentarei o processo vocacional, do chamado do Senhor, que mexe com nossas entranhas comprometendo-nos com a vontade de Deus.  

A fé cristã ilumina nosso caminhar no seguimento de Jesus. Cremos, isto é uma verdade para nós, que a vida é um Dom. Somos chamados(as) à vida sem decidir se queremos ou não. No entanto, a explosão da vida é um milagre que surge da beleza da criação como a plenitude da ação de Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (Gn 1,28), trata-se de uma benção. Por ela, Deus nos dá de presente a possibilidade de participar da criação e, como bem diz João: “Amados, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 Jo 3,2). E isso é maravilhoso! Vocação, no singular, é participar desse Mistério. Por sua vez, vocações, no plural, requer o nosso envolvimento, discernimento e adesão, para seguir Jesus deixando tudo para fazer o que ele nos pedir (Jo 2,5). É saber saborear o vinho bom que dá o verdadeiro sentido da festa da vida, de nossa aliança definitiva com o Reino.

Neste artigo apresentarei o processo vocacional, do chamado do Senhor, que mexe com nossas entranhas comprometendo-nos com a vontade de Deus.

 

Vocação é chamado

O termo clássico de vocação quer dizer chamado, apelo, convocação. O protagonista não somos nós, mas Deus mesmo. Ele, na sua liberdade, nos convoca. Ele planta dentro de nós o jardim do Éden, no meio de uma família, de uma cultura, de uma pátria. Na medida em que vamos despertando para a consciência do que somos como pessoas em relação, compreendemos que não estamos isolados no mundo e que somos feitos para sair do Eu em direção ao Nós, que se expressa numa sociedade em harmonia com toda a criação.

 

Quando passamos do inconsciente de nossas ações para o coletivo, iniciamos um processo longo de amadurecimento que dura toda a vida. A maturidade, por conseguinte, não é o fim de um caminho, mas sim as variadas maneiras de chegar a ser, através das relações sociais, um ser em construção. O desafio é saber alimentar a árvore do bem que está dentro de nós, superando as seduções da árvore da cobiça, do consumo, da injustiça, da maldade, da indiferença, do orgulho que leva a se destacar da fonte da vida e a morrer como palha seca levada pelo vento, ou, como diz São Paulo, deixar-se sucumbir pelas “obras da carne” (Rm 8, 5-7). 

 

Essa é a vocação humana à qual somos chamados e que torna-se projeto de vida cristã a partir do Batismo, quando somos enxertados em Cristo, purificados pela água, ungidos como sacerdotes, profetas e reis, iluminados pela luz de nossas velas que devemos manter acessas na espera ativa do Senhor que um dia chegará e não nos poderá encontrar com a vela apagada (Mt 25, 1-10) ou quando enterramos os dons recebidos com medo e desconfiados do retorno do Senhor (Mt 25, 14-30). Esses textos são iluminadores para entendermos o realismo da vocação. Não há vida sem convocação. Não somos fruto do acaso e nem podemos viver movidos pelos ímpetos da novidade. Há em nós uma gênesis, uma origem, que dá sentido ao nosso existir e no qual somos filhos de Deus na relação com o Pai.

 

Vocações: saber discernir

Na Exortação Apostólica Chistus Vivit (CV - Cristo Vive) o Papa Francisco afirma que o discernimento não é tanto para consolar a própria pessoa, mas para “enquadrar a vida relacionada aos outros” (n. 286). Seria muito simples escolher apenas para satisfazer a si mesmo e ter o problema resolvido. No entanto, é importante saber se descobrir, mudar de lentes para poder enxergar melhor a realidade que está ao nosso redor.

 

Quando nos dispomos a discernir, diz o Papa, precisamos estar conscientes de que toda e qualquer vocação é “o chamado de um amigo” (CV, 287). Jesus não é alguém que nos causa ansiedade e pavor, mas aquele que sorri para nós e nos chama a estar com ele: “Não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu Senhor; mas eu vos tenho chamado amigos, pois tudo o que ouvi de meu Pai eu compartilhei convosco” (Jo 15,15). O dom da vocação, portanto, é uma eleição exclusiva de Deus, da sua vontade. Ele pensa naquele que chama como amigo e lhe dá uma graça plena. Por isso é tão forte em Paulo a frase: “Não sou eu quem vivo, mas Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). Esta certeza e configuração a Jesus só acontece numa intimidade nele e com ele. Eis, então, o sentido profundo do chamado, a alegria de ter recebido um dom e a esperança de que, mesmo nos fracassos, esta experiência não se rompe (CV, 290).

 

Confiança e escuta

Contudo, há um processo de mão dupla no discernimento: a confiança e a capacidade de escuta. Quando procuramos alguém para revelar as inquietações pessoais é porque temos confiança. Ninguém fala de si mesmo sem ter a certeza de que o outro está disponível para escutar. Por outro lado, quem escuta deve ter a sensibilidade do tempo, da paciência e da dedicação para que o outro entenda que o tempo de quem o escuta torna-se seu também (CV, 292). A escuta deve ser incondicional, ou seja, sem preconceitos, juízos, manipulações e ofensas. Quem escuta precisa desenvolver a capacidade de se desarmar e fazer uma parte do caminho em comunhão com o outro. É a missão daquele que ajuda a entender o mistério fazendo uma parte do caminho, sempre deixando a liberdade da escolha. Trata-se, pois, de um processo que alegra o coração e que ajuda o ouvinte a entender, seja nos gestos, nas palavras ou no corpo do outro, uma linguagem não verbal, que comunica a interioridade.

 

O grande dilema do discernimento é quando o ouvinte não consegue gerar uma empatia a tal ponto de compreender a interface entre o que se diz e o que se quer dizer. Isto significa buscar entender para onde o outro que fala quer realmente ir (CV, 294), para onde o Senhor o está encantando, trata-se da meta a ser alcançada.

 

Quando esta empatia não acontece suscita a angústia, ou seja, a incerteza, o fechamento, a cegueira, mesmo que o coração sinta arder algo que inquieta por dentro. Isto quer dizer que não pode haver discernimento sem liberdade (CV, 295). Não há discernimento sem superar o medo de Deus ou das concepções de Deus que, tanto o que acompanha como o acompanhado podem ter. Vencendo o medo, ambos, acompanhante e acompanhado, seguem, num certo momento, caminhos diferentes. Aquele que escuta desaparece e fica o dom recebido e o desejo irresistível de voltar “à Galileia” para encontrar o Senhor, ou seja, de volta à comunidade, ao ninho onde começou a ser gerada a vocação. Ali se vence o medo e a angústia da resposta generosa: Eis-me aqui, Senhor!

 

Cristãos leigos e leigas

O Papa São João Paulo II escreveu uma importante exortação apostólica após o Sínodo sobre a missão dos cristãos leigos e leigas no mundo, a Christifideles Laici (CFL), de 1988. Foi uma ocasião muito fecunda para repensar, à luz do Concílio Vaticano II e do Sínodo, o resgate do Batismo como principal fonte de vida e missão para todos os batizados. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2018, dedicou todo o ano para refletir sobre a natureza e missão dos cristãos leigos e leigas no Brasil.

 

Essas iniciativas reforçam o grande valor do ser cristão. Porque “o significado fundamental deste Sínodo e, consequentemente, o seu fruto mais precioso, é que os fiéis leigos escutem o chamamento de Cristo para trabalharem na Sua vinha, para tomar parte viva, consciente e responsável na missão da Igreja, nesta hora magnífica e dramática da história, no limiar do terceiro milênio. Novas situações, tanto eclesiais como sociais, econômicas, políticas e culturais, reclamam hoje, com uma força toda particular, a ação dos fiéis leigos. Se o desinteresse foi sempre inaceitável, o tempo presente torna-o ainda mais culpável. Não é lícito a ninguém ficar inativo” (CFL, 3). Não basta ser batizado, é preciso ir mais além, assumir a missão de evangelizar.

 

Não há “lugar para o ócio na vinha do Senhor” (CFL, 3). Isto significa que ser cristão é um chamado a sair de si mesmo, deixar de ser autorreferência e comprometer-se com a vivência fecunda da missão da Igreja. Não podemos ter medo de encarar o mundo com seus desafios, obstáculos e perigos. Devemos assumir, com a força do Espírito Santo, a natureza mesma de ser ungido e enviado para a missão. A laicidade não é o desconhecimento ou sinônimo de secularização, mas “tornar-se protagonistas e, em certa medida, criadores de uma nova cultura humanista, é uma exigência ao mesmo tempo universal e individual” (CFL, 5).

 

Quem são, portanto, os cristãos leigos e leigas? Tanto o Concílio Vaticano II como a exortação sobre a missão afirmam categoricamente: “Por leigos — assim os descreve a Constituição Lumen gentium — entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, exercem pela parte que lhes toca, na Igreja e no mundo, a missão de todo o povo cristão” (CFL, 9). O que está sublinhando é o essencial da identidade laical.

 

Ser cristão leigo e leiga requer assumir hoje, sobretudo nestes tempos de retrocesso eclesial, que “o mundo torne-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos, pois também ele está destinado a dar glória a Deus Pai em Cristo. O Concílio pode, então, indicar qual o sentido próprio e peculiar da vocação divina dirigida aos fiéis leigos. Estes não são chamados a deixar o lugar que ocupam no mundo. O Batismo não os tira de modo nenhum do mundo, como sublinha o apóstolo Paulo: ‘Irmãos, fique cada um de vós diante de Deus na condição em que estava quando foi chamado’ (1 Cor 7, 24); mas confia-lhes uma vocação que diz respeito a essa mesma condição intra-mundana: pois, os fiéis leigos “são chamados por Deus para que aí, exercendo o seu próprio ofício, inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais, pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade”. Dessa forma, o estar e o agir no mundo são para os fiéis leigos uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial, pois, é na sua situação intra-mundana que Deus manifesta o Seu plano e comunica a especial vocação de “procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (CFL, 15).

É preciso retornar ao essencial da natureza do laicato para que a Igreja seja de fato, como pede o Papa Francisco: “Uma Igreja em saída para as periferias existenciais”.

 

Vida Religiosa Consagrada

Antes de qualquer afirmação é preciso considerar que as pessoas consagradas vivem a laicidade, quer dizer, o ser cristão, numa forma exclusiva de vida, como bem disse São João Paulo II: “A consagração baptismal é levada a uma resposta radical no seguimento de Cristo pela assunção dos conselhos evangélicos, sendo o vínculo sagrado da castidade pelo Reino dos Céus o primeiro e mais essencial deles” (Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, n. 14).

 

Neste sentido, “as pessoas consagradas, que abraçam os conselhos evangélicos, recebem uma nova e especial consagração que, apesar de não ser sacramental, as compromete a assumirem — no celibato, na pobreza e na obediência — a forma de vida praticada pessoalmente por Jesus, e por Ele proposta aos discípulos” (Vita Consecrata, 31). Essa nova e especial consagração exclusiva a Deus se articula de forma harmoniosa em três pilares: os conselhos evangélicos, a vida fraterna em comunidade e a missão.

 

No entanto, há diferentes formas de ser consagrado na Igreja. Aqui menciono resumidamente essa rica diversidade para enfatizar o que afirmou São João Paulo II: “como não recordar, cheios de gratidão ao Espírito, a abundância das formas históricas de vida consagrada, por Ele suscitadas e continuamente mantidas no tecido eclesial? Assemelham-se a uma planta com muitos ramos, que assenta as suas raízes no Evangelho e produz frutos abundantes em cada estação da Igreja. Que riqueza extraordinária! Eu mesmo, no final do Sínodo, senti a necessidade de sublinhar este elemento constante na história da Igreja: a multidão de fundadores e fundadoras, de santos e santas, que escolheram seguir Cristo na radicalidade do Evangelho e no serviço fraterno, especialmente a favor dos pobres e dos abandonados” (Vita Consecrata, n. 5):

  1. Vida monástica no Oriente e Ocidente: desde os primeiros séculos (VC, 6);
  2. A Ordem das virgens, dos eremitas, as viúvas (VC, 7);
  3. Institutos dedicados à contemplação (VC, 8);
  4. Vida religiosa Apostólica: cônegos regulares, Ordens mendicantes, clérigos regulares, Congregações religiosas femininas e masculinas (VC, 9);
  5. Institutos seculares: clérigos e cristãos leigos consagrados que vivem na sociedade, às vezes, anônimos (VC, 10);
  6. As Sociedades de vida apostólicas masculinas e femininas (VC, 11);
  7. Novas expressões de Vida Consagrada (VC, 12).

 

A essa riqueza de vida consagrada são pedidas a fidelidade criativa aos carismas fundacionais, a comunhão com o Pai, no seguimento de Jesus Cristo e na luz do Espírito Santo; a busca da santidade e com o testemunho público do amor incondicional a Deus e à missão; a fecundidade vocacional; a comunhão eclesial; comunhão e colaboração com os cristãos leigos. De fato, a Vida Religiosa Consagrada está no mundo com a imagem permanente da Transfiguração para serem homens e mulheres configurados a Jesus, missionários do Pai.

 

Concluo com a bela oração composta por São João Paulo II no final da Exortação que nos recorda o grande Dom da consagração à luz do “sim” de Maria.

 

Ó Maria, figura da Igreja,

Esposa sem ruga nem mancha,

que imitando-Vos “conserva virginalmente (...)

uma fé íntegra, uma sólida esperança e uma verdadeira caridade”,

amparai as pessoas consagradas na busca da eterna e única Bem-aventurança.

Confiamo-las a Vós,

Virgem da Visitação,

para que saibam correr ao encontro das necessidades humanas,

para levarem ajuda,

mas sobretudo para levarem Jesus.

Ensinai-lhes a proclamar

as maravilhas que o Senhor realiza no mundo,

para que todos os povos glorifiquem o seu nome.

Sustentai-as na sua ação em favor dos pobres,

dos famintos, dos desesperados,

dos últimos e de todos aqueles

que procuram o vosso Filho com coração sincero.

A vós, Mãe,

que quereis a renovação espiritual e apostólica

dos vossos filhos e filhas

na resposta de amor e dedicação total a Cristo,

dirigimos confiantes a nossa oração.

Vós que fizestes a vontade do Pai,

pronta na obediência, corajosa na pobreza,

acolhedora na virgindade fecunda,

alcançai do vosso divino Filho que,

quantos receberam o dom de O seguir na vida consagrada,

saibam testemunhá-Lo com uma existência transfigurada,

caminhando jubilosamente, com todos os outros irmãos e irmãs,

para a pátria celeste e para a luz que não conhece ocaso.

Nós Vo-lo pedimos, para que,

em todos e em tudo,

seja glorificado, bendito e amado

o Supremo Senhor de todas as coisas

que é “Pai, Filho e Espírito Santo” (VC, 112)

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Vocação e vocações: saber acolher o Dom de Deus

Quarta, 12 Agosto 2020 12:06 Escrito por  Pe. João Mendonça, SDB
Vocação e vocações: saber acolher o Dom de Deus iStock.com
Neste artigo apresentarei o processo vocacional, do chamado do Senhor, que mexe com nossas entranhas comprometendo-nos com a vontade de Deus.  

A fé cristã ilumina nosso caminhar no seguimento de Jesus. Cremos, isto é uma verdade para nós, que a vida é um Dom. Somos chamados(as) à vida sem decidir se queremos ou não. No entanto, a explosão da vida é um milagre que surge da beleza da criação como a plenitude da ação de Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (Gn 1,28), trata-se de uma benção. Por ela, Deus nos dá de presente a possibilidade de participar da criação e, como bem diz João: “Amados, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 Jo 3,2). E isso é maravilhoso! Vocação, no singular, é participar desse Mistério. Por sua vez, vocações, no plural, requer o nosso envolvimento, discernimento e adesão, para seguir Jesus deixando tudo para fazer o que ele nos pedir (Jo 2,5). É saber saborear o vinho bom que dá o verdadeiro sentido da festa da vida, de nossa aliança definitiva com o Reino.

Neste artigo apresentarei o processo vocacional, do chamado do Senhor, que mexe com nossas entranhas comprometendo-nos com a vontade de Deus.

 

Vocação é chamado

O termo clássico de vocação quer dizer chamado, apelo, convocação. O protagonista não somos nós, mas Deus mesmo. Ele, na sua liberdade, nos convoca. Ele planta dentro de nós o jardim do Éden, no meio de uma família, de uma cultura, de uma pátria. Na medida em que vamos despertando para a consciência do que somos como pessoas em relação, compreendemos que não estamos isolados no mundo e que somos feitos para sair do Eu em direção ao Nós, que se expressa numa sociedade em harmonia com toda a criação.

 

Quando passamos do inconsciente de nossas ações para o coletivo, iniciamos um processo longo de amadurecimento que dura toda a vida. A maturidade, por conseguinte, não é o fim de um caminho, mas sim as variadas maneiras de chegar a ser, através das relações sociais, um ser em construção. O desafio é saber alimentar a árvore do bem que está dentro de nós, superando as seduções da árvore da cobiça, do consumo, da injustiça, da maldade, da indiferença, do orgulho que leva a se destacar da fonte da vida e a morrer como palha seca levada pelo vento, ou, como diz São Paulo, deixar-se sucumbir pelas “obras da carne” (Rm 8, 5-7). 

 

Essa é a vocação humana à qual somos chamados e que torna-se projeto de vida cristã a partir do Batismo, quando somos enxertados em Cristo, purificados pela água, ungidos como sacerdotes, profetas e reis, iluminados pela luz de nossas velas que devemos manter acessas na espera ativa do Senhor que um dia chegará e não nos poderá encontrar com a vela apagada (Mt 25, 1-10) ou quando enterramos os dons recebidos com medo e desconfiados do retorno do Senhor (Mt 25, 14-30). Esses textos são iluminadores para entendermos o realismo da vocação. Não há vida sem convocação. Não somos fruto do acaso e nem podemos viver movidos pelos ímpetos da novidade. Há em nós uma gênesis, uma origem, que dá sentido ao nosso existir e no qual somos filhos de Deus na relação com o Pai.

 

Vocações: saber discernir

Na Exortação Apostólica Chistus Vivit (CV - Cristo Vive) o Papa Francisco afirma que o discernimento não é tanto para consolar a própria pessoa, mas para “enquadrar a vida relacionada aos outros” (n. 286). Seria muito simples escolher apenas para satisfazer a si mesmo e ter o problema resolvido. No entanto, é importante saber se descobrir, mudar de lentes para poder enxergar melhor a realidade que está ao nosso redor.

 

Quando nos dispomos a discernir, diz o Papa, precisamos estar conscientes de que toda e qualquer vocação é “o chamado de um amigo” (CV, 287). Jesus não é alguém que nos causa ansiedade e pavor, mas aquele que sorri para nós e nos chama a estar com ele: “Não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu Senhor; mas eu vos tenho chamado amigos, pois tudo o que ouvi de meu Pai eu compartilhei convosco” (Jo 15,15). O dom da vocação, portanto, é uma eleição exclusiva de Deus, da sua vontade. Ele pensa naquele que chama como amigo e lhe dá uma graça plena. Por isso é tão forte em Paulo a frase: “Não sou eu quem vivo, mas Cristo que vive em mim” (Gal 2,20). Esta certeza e configuração a Jesus só acontece numa intimidade nele e com ele. Eis, então, o sentido profundo do chamado, a alegria de ter recebido um dom e a esperança de que, mesmo nos fracassos, esta experiência não se rompe (CV, 290).

 

Confiança e escuta

Contudo, há um processo de mão dupla no discernimento: a confiança e a capacidade de escuta. Quando procuramos alguém para revelar as inquietações pessoais é porque temos confiança. Ninguém fala de si mesmo sem ter a certeza de que o outro está disponível para escutar. Por outro lado, quem escuta deve ter a sensibilidade do tempo, da paciência e da dedicação para que o outro entenda que o tempo de quem o escuta torna-se seu também (CV, 292). A escuta deve ser incondicional, ou seja, sem preconceitos, juízos, manipulações e ofensas. Quem escuta precisa desenvolver a capacidade de se desarmar e fazer uma parte do caminho em comunhão com o outro. É a missão daquele que ajuda a entender o mistério fazendo uma parte do caminho, sempre deixando a liberdade da escolha. Trata-se, pois, de um processo que alegra o coração e que ajuda o ouvinte a entender, seja nos gestos, nas palavras ou no corpo do outro, uma linguagem não verbal, que comunica a interioridade.

 

O grande dilema do discernimento é quando o ouvinte não consegue gerar uma empatia a tal ponto de compreender a interface entre o que se diz e o que se quer dizer. Isto significa buscar entender para onde o outro que fala quer realmente ir (CV, 294), para onde o Senhor o está encantando, trata-se da meta a ser alcançada.

 

Quando esta empatia não acontece suscita a angústia, ou seja, a incerteza, o fechamento, a cegueira, mesmo que o coração sinta arder algo que inquieta por dentro. Isto quer dizer que não pode haver discernimento sem liberdade (CV, 295). Não há discernimento sem superar o medo de Deus ou das concepções de Deus que, tanto o que acompanha como o acompanhado podem ter. Vencendo o medo, ambos, acompanhante e acompanhado, seguem, num certo momento, caminhos diferentes. Aquele que escuta desaparece e fica o dom recebido e o desejo irresistível de voltar “à Galileia” para encontrar o Senhor, ou seja, de volta à comunidade, ao ninho onde começou a ser gerada a vocação. Ali se vence o medo e a angústia da resposta generosa: Eis-me aqui, Senhor!

 

Cristãos leigos e leigas

O Papa São João Paulo II escreveu uma importante exortação apostólica após o Sínodo sobre a missão dos cristãos leigos e leigas no mundo, a Christifideles Laici (CFL), de 1988. Foi uma ocasião muito fecunda para repensar, à luz do Concílio Vaticano II e do Sínodo, o resgate do Batismo como principal fonte de vida e missão para todos os batizados. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2018, dedicou todo o ano para refletir sobre a natureza e missão dos cristãos leigos e leigas no Brasil.

 

Essas iniciativas reforçam o grande valor do ser cristão. Porque “o significado fundamental deste Sínodo e, consequentemente, o seu fruto mais precioso, é que os fiéis leigos escutem o chamamento de Cristo para trabalharem na Sua vinha, para tomar parte viva, consciente e responsável na missão da Igreja, nesta hora magnífica e dramática da história, no limiar do terceiro milênio. Novas situações, tanto eclesiais como sociais, econômicas, políticas e culturais, reclamam hoje, com uma força toda particular, a ação dos fiéis leigos. Se o desinteresse foi sempre inaceitável, o tempo presente torna-o ainda mais culpável. Não é lícito a ninguém ficar inativo” (CFL, 3). Não basta ser batizado, é preciso ir mais além, assumir a missão de evangelizar.

 

Não há “lugar para o ócio na vinha do Senhor” (CFL, 3). Isto significa que ser cristão é um chamado a sair de si mesmo, deixar de ser autorreferência e comprometer-se com a vivência fecunda da missão da Igreja. Não podemos ter medo de encarar o mundo com seus desafios, obstáculos e perigos. Devemos assumir, com a força do Espírito Santo, a natureza mesma de ser ungido e enviado para a missão. A laicidade não é o desconhecimento ou sinônimo de secularização, mas “tornar-se protagonistas e, em certa medida, criadores de uma nova cultura humanista, é uma exigência ao mesmo tempo universal e individual” (CFL, 5).

 

Quem são, portanto, os cristãos leigos e leigas? Tanto o Concílio Vaticano II como a exortação sobre a missão afirmam categoricamente: “Por leigos — assim os descreve a Constituição Lumen gentium — entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Batismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, exercem pela parte que lhes toca, na Igreja e no mundo, a missão de todo o povo cristão” (CFL, 9). O que está sublinhando é o essencial da identidade laical.

 

Ser cristão leigo e leiga requer assumir hoje, sobretudo nestes tempos de retrocesso eclesial, que “o mundo torne-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos, pois também ele está destinado a dar glória a Deus Pai em Cristo. O Concílio pode, então, indicar qual o sentido próprio e peculiar da vocação divina dirigida aos fiéis leigos. Estes não são chamados a deixar o lugar que ocupam no mundo. O Batismo não os tira de modo nenhum do mundo, como sublinha o apóstolo Paulo: ‘Irmãos, fique cada um de vós diante de Deus na condição em que estava quando foi chamado’ (1 Cor 7, 24); mas confia-lhes uma vocação que diz respeito a essa mesma condição intra-mundana: pois, os fiéis leigos “são chamados por Deus para que aí, exercendo o seu próprio ofício, inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais, pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade”. Dessa forma, o estar e o agir no mundo são para os fiéis leigos uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial, pois, é na sua situação intra-mundana que Deus manifesta o Seu plano e comunica a especial vocação de “procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (CFL, 15).

É preciso retornar ao essencial da natureza do laicato para que a Igreja seja de fato, como pede o Papa Francisco: “Uma Igreja em saída para as periferias existenciais”.

 

Vida Religiosa Consagrada

Antes de qualquer afirmação é preciso considerar que as pessoas consagradas vivem a laicidade, quer dizer, o ser cristão, numa forma exclusiva de vida, como bem disse São João Paulo II: “A consagração baptismal é levada a uma resposta radical no seguimento de Cristo pela assunção dos conselhos evangélicos, sendo o vínculo sagrado da castidade pelo Reino dos Céus o primeiro e mais essencial deles” (Exortação apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, n. 14).

 

Neste sentido, “as pessoas consagradas, que abraçam os conselhos evangélicos, recebem uma nova e especial consagração que, apesar de não ser sacramental, as compromete a assumirem — no celibato, na pobreza e na obediência — a forma de vida praticada pessoalmente por Jesus, e por Ele proposta aos discípulos” (Vita Consecrata, 31). Essa nova e especial consagração exclusiva a Deus se articula de forma harmoniosa em três pilares: os conselhos evangélicos, a vida fraterna em comunidade e a missão.

 

No entanto, há diferentes formas de ser consagrado na Igreja. Aqui menciono resumidamente essa rica diversidade para enfatizar o que afirmou São João Paulo II: “como não recordar, cheios de gratidão ao Espírito, a abundância das formas históricas de vida consagrada, por Ele suscitadas e continuamente mantidas no tecido eclesial? Assemelham-se a uma planta com muitos ramos, que assenta as suas raízes no Evangelho e produz frutos abundantes em cada estação da Igreja. Que riqueza extraordinária! Eu mesmo, no final do Sínodo, senti a necessidade de sublinhar este elemento constante na história da Igreja: a multidão de fundadores e fundadoras, de santos e santas, que escolheram seguir Cristo na radicalidade do Evangelho e no serviço fraterno, especialmente a favor dos pobres e dos abandonados” (Vita Consecrata, n. 5):

  1. Vida monástica no Oriente e Ocidente: desde os primeiros séculos (VC, 6);
  2. A Ordem das virgens, dos eremitas, as viúvas (VC, 7);
  3. Institutos dedicados à contemplação (VC, 8);
  4. Vida religiosa Apostólica: cônegos regulares, Ordens mendicantes, clérigos regulares, Congregações religiosas femininas e masculinas (VC, 9);
  5. Institutos seculares: clérigos e cristãos leigos consagrados que vivem na sociedade, às vezes, anônimos (VC, 10);
  6. As Sociedades de vida apostólicas masculinas e femininas (VC, 11);
  7. Novas expressões de Vida Consagrada (VC, 12).

 

A essa riqueza de vida consagrada são pedidas a fidelidade criativa aos carismas fundacionais, a comunhão com o Pai, no seguimento de Jesus Cristo e na luz do Espírito Santo; a busca da santidade e com o testemunho público do amor incondicional a Deus e à missão; a fecundidade vocacional; a comunhão eclesial; comunhão e colaboração com os cristãos leigos. De fato, a Vida Religiosa Consagrada está no mundo com a imagem permanente da Transfiguração para serem homens e mulheres configurados a Jesus, missionários do Pai.

 

Concluo com a bela oração composta por São João Paulo II no final da Exortação que nos recorda o grande Dom da consagração à luz do “sim” de Maria.

 

Ó Maria, figura da Igreja,

Esposa sem ruga nem mancha,

que imitando-Vos “conserva virginalmente (...)

uma fé íntegra, uma sólida esperança e uma verdadeira caridade”,

amparai as pessoas consagradas na busca da eterna e única Bem-aventurança.

Confiamo-las a Vós,

Virgem da Visitação,

para que saibam correr ao encontro das necessidades humanas,

para levarem ajuda,

mas sobretudo para levarem Jesus.

Ensinai-lhes a proclamar

as maravilhas que o Senhor realiza no mundo,

para que todos os povos glorifiquem o seu nome.

Sustentai-as na sua ação em favor dos pobres,

dos famintos, dos desesperados,

dos últimos e de todos aqueles

que procuram o vosso Filho com coração sincero.

A vós, Mãe,

que quereis a renovação espiritual e apostólica

dos vossos filhos e filhas

na resposta de amor e dedicação total a Cristo,

dirigimos confiantes a nossa oração.

Vós que fizestes a vontade do Pai,

pronta na obediência, corajosa na pobreza,

acolhedora na virgindade fecunda,

alcançai do vosso divino Filho que,

quantos receberam o dom de O seguir na vida consagrada,

saibam testemunhá-Lo com uma existência transfigurada,

caminhando jubilosamente, com todos os outros irmãos e irmãs,

para a pátria celeste e para a luz que não conhece ocaso.

Nós Vo-lo pedimos, para que,

em todos e em tudo,

seja glorificado, bendito e amado

o Supremo Senhor de todas as coisas

que é “Pai, Filho e Espírito Santo” (VC, 112)

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