O que pode fazer a Família Salesiana para dar uma resposta diante da crise mundial decorrente da pandemia da Covid-19, que, além da tristeza e desesperança pela emergência sanitária em si, carrega também graves consequências econômicas e sociais? Este é o questionamento que perpassa todo o comentário do Reitor-mor dos Salesianos, padre Ángel Fernández Artime, à Estreia 2021. O tema proposto pelo décimo sucessor de Dom Bosco para este ano já indica em si um caminho: “Movidos pela esperança: ‘Eis que faço novas todas as coisas’ (Ap 21,5)”.
Padre Artime inicia o texto da Estreia relembrando como exemplo a oração do Papa Francisco, sozinho na Praça São Pedro, em Roma, em 27 de março de 2020: “Com aquele gesto, ele recordou a todo este nosso mundo, formado por raças, culturas, nações e religiões diversas, que Deus tem a capacidade de dirigir para o bem também as realidades mais desastrosas e dolorosas. E convidou-nos a olhar com compaixão para a nossa pequena fé”. Em seguida, o Reitor-mor traça um panorama da situação atual, uma realidade mundial “que nos interpela e que não podemos ignorar”.
Crise global
A pandemia da Covid-19 provocou a maior crise global dos últimos 70 anos, trazendo medo, dor e insegurança para todos. As consequências dessa crise mundial se farão sentir também por muitos anos em todas as áreas: econômica, política, cultural e mesmo na visão que temos do ser humano. Diante dessa dura realidade, padre Ángel ressalta que houve muitos gestos de generosa doação e sacrifício, especialmente o trabalho heroico dos agentes de saúde e de todos que garantiram os serviços essenciais necessários à sociedade. Entretanto, observa ele, “também houve situações vergonhosas, marcadas pelo egoísmo, pelas quais não se quis compartilhar materiais sanitários ou equipamentos médicos, não entendendo que a crise econômica global requer e precisará de uma resposta global”.
Ao analisar o contexto atual, o Reitor-mor cita ainda as muitas “pandemias” que continuam a crescer em nosso mundo, embora às vezes não sejam tão percebidas por todos, como os 32 focos de guerra ativos nesse momento, o comércio de armas (que aumentou durante a pandemia da Covid-19) e a violência contra os jovens, marcada pelo tráfico humano, tráfico de drogas e terrorismo.
“Eu, então, me pergunto: qual será o sentido da ‘nova normalidade’ de que tanto se fala? O que ficará em cada um de nós depois deste ano? Haverá uma corrida aloucada para recuperar o ‘tempo perdido’, a economia perdida? Será apenas um terrível pesadelo ou, ao contrário, deixará algo de positivo em muitas pessoas, na organização das sociedades? A ‘nova normalidade’ trará realmente alguma coisa nova, mudará algumas realidades para melhor? Não sei o que nos espera, mas sinto que há um caminho que poderíamos percorrer como Família Salesiana e que nos faria muito bem, oferecendo ao mesmo tempo a nossa humilde contribuição e a nossa humilde ajuda aos outros”, afirma o padre Ángel Artime.
O que significa falar de esperança?
Ao tratar sobre o significado da palavra “esperança” para a Família Salesiana, padre Ángel considera que a leitura que os discípulos de Dom Bosco fazem da realidade não pode ser a mesma de outros setores da sociedade. “Não somos movidos pelos interesses das cadeias de hotéis ou das companhias aéreas. Sem negar que aquilo que eticamente cria trabalho e sustento é bom em si mesmo, não temos em mira o turismo que deve ser ativado, nem a produtividade que deve crescer (...). Por mais que tudo isso seja justo, ainda falta alguma coisa em nossa visão, em nossa interpretação e no que nos motiva e move para a ação”, afirma ele.
Assim, ele ressalta que a esperança é algo que faz parte da essência do ser humano, no sentido de que sempre almejamos algo além do atual. E reforça a primeira parte do tema da Estreia: somos “movidos” pela esperança, ou seja, a esperança deve nos colocar em movimento, e não em ato passivo de espera. Diz o Reitor-mor: “mesmo neste mundo com tantas notas de desumanidade pode-se viver com uma atitude diferente. Há quem viva no lamento e na negatividade, com o coração endurecido. Felizmente, há também muitos que procuram viver movidos por um dinamismo que leva a buscar a vida, a tentar fazer o melhor, a concentrar-se no viver de amor e de serviço, a trabalhar sob o dinamismo da esperança”.
O sustentáculo para essa concepção de esperança está no Evangelho: “A esperança cristã é histórica e tem sua base na profunda confiança em Deus, o Deus de Jesus Cristo, que jamais abandona o seu povo e está sempre com ele. É uma esperança que vai além de tudo que possa satisfazer as expectativas humanas relacionadas com o ‘aqui e agora’, este momento presente, sustentado apenas pelos recursos pessoais ou pelos meios humanos e materiais à nossa disposição. A esperança de que estamos a falar fundamenta-se na promessa de Deus, que é o seu melhor fiador”.
Perspectiva salesiana
Após analisar o momento presente, o Reitor-mor questiona qual seria o melhor modo de enfrentar a pós-pandemia e convida a Família Salesiana a refletir sobre como o que estamos vivendo pode nos ensinar a mudar valores e visões da vida. Ele lista então algumas atitudes de esperança, sendo a primeira delas “que o confinamento vivido por nós ajude a nos abrirmos”: “Abrir os espaços, os ambientes, as janelas da vida. Abrir-nos ao encontro com o outro. Abandonar tudo o que nos fecha, recuperar o sentido da nossa abertura, da abertura do coração. Recuperar a visão de um horizonte mais amplo”.
Em seguida, padre Ángel Artime fala sobre a necessidade de sair do individualismo crescente para uma maior solidariedade e fraternidade. A pandemia da Covid-19 mostrou o quanto todos nós somos frágeis e dependentes uns dos outros, sendo a solidariedade, como afirma o Papa Francisco, a maior vitória sobre a solidão. O Reitor-mor também ressalta a importância de passar do isolamento à cultura do encontro; não o encontro formal de estar no mesmo ambiente de outras pessoas, mas em uma cultura de empatia e proximidade com os outros.
“Na mesma ótica, estamos cientes de que não é possível gerar uma cultura de encontro sem garantir a unidade; a mesma unidade que o Espírito de Deus oferece a quem entra em comunhão com Ele, e que nos une e nos lança na vivência da mesma vocação: ser filhos amados de Deus”, reflete o Reitor-mor, ao afirmar que é preciso passar da divisão a uma maior unidade e comunhão.
Padre Ángel Artime considera ainda que é necessário ir do desânimo, do vazio e da falta de sentido para a transcendência. Diante da pandemia da Covid-19, o ser humano percebeu sua própria fragilidade e foi da excessiva segurança em si “à incerteza de um terreno instável e inseguro”. Esse caminho, ressalta o Reitor-mor, abre-nos à necessidade de transcendência, pois “não nos salvamos apenas com as nossas forças. Ninguém se salva sozinho”.
Por fim, o Reitor-mor reafirma os ensinamentos de Dom Bosco em seu tempo, diante da pandemia do cólera, e conclama: “Novas respostas são necessárias. Uma vida corajosa que seja portadora de algo realmente novo. Resumindo, para ser como Dom Bosco quando hoje o cólera se chama ‘coronavírus’, é necessário caminhar, sair, ser presença e ser resposta”.